Adoecer psiquicamente não é prerrogativa da modernidade. É tão humano quanto nascer ou morrer, ter diabetes, hemorragia
ADOECER FAZ parte da condição humana. Quando alguém adoece, é natural que receba afeto, simpatia e compreensão para superar o problema. Mas o mesmo não acontece quando essa pessoa adoece por um transtorno mental.
A doença, nesse caso, pode ser interpretada como sinal de fraqueza, de autoflagelo, de covardia. Adoecer psiquicamente não é prerrogativa da modernidade. É tão humano quanto nascer ou morrer. O transtorno mental não escolhe nem cor de pele nem classe social. Quantos reis e rainhas fazem parte dessa lista? Quantos artistas consagrados que conseguiram realizar grandes obras apesar de seus tormentos? Que sofrimentos não experimentaram Van Gogh, Virginia Woolf e Vladimir Maiakóvski?
Estou tentando me lembrar de uma só família que tenha passado incólume por essa marca. Como convencer as pessoas de que adoecer mentalmente é tão normal quanto ter hipertensão arterial, diabetes ou hemorragia? Em outubro de 2007, a tradicional publicação britânica “The Lancet”, por obra de seu jovem e instigante editor, Richard Horton, decidiu abraçar a causa dos transtornos mentais (www.cepp.org.br/lancetconf/).
A iniciativa do “Lancet” foi reforçada por um movimento intitulado “Global Mental Health Movement”, que lançou um chamado para uma ação global pela ampliação dos serviços de saúde mental. Hoje, 10 de outubro, Dia Mundial da Saúde Mental, a OMS está lançando um programa semelhante em Genebra. A meta é que todo desvalido e marginalizado tenha seus direitos contemplados. Que todo sujeito com problema, independentemente de cor, classe e diagnóstico, tenha direito à liberdade, ao respeito e à dignidade que façam dele um semelhante, apenas diferente.
Adoecer de um transtorno mental é tão natural quanto os dizeres do verso do poeta Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. A estimativa é que 25% da nossa população adulta irá exigir algum tipo de cuidado de saúde mental no espaço de um ano. A magnitude dessa realidade provoca enorme descompasso entre demanda e disponibilidade de serviços, mesmo nos países desenvolvidos.
O que dizer desse desequilíbrio nos países mais pobres? Nos últimos anos, vimos uma redução substancial dos leitos psiquiátricos no país e a introdução progressiva dos novos Caps (centros de atenção psicossocial). Vários pacientes saíram da situação de confinamento e voltaram para casa. Os profissionais brigam entre si. Alguns defendem os hospitais, outros, o atendimento comunitário. O paciente fica no meio, à mercê da disputa.
O que mais importa é que as alternativas de tratamento, em hospitais ou em Caps, sejam humanizadas, condignas e efetivas, ou seja, compostas, de fato, de uma terapêutica especializada e de padrão internacional. Pode ser preciso estender o tratamento por toda a vida. Ah! Mas o tratamento escraviza, deixa a vítima dependente da pílula, dirão os críticos do uso continuado, por exemplo, de medicação psicotrópica.
Sou defensor da interpretação antagônica: o tratamento liberta, deixa o sujeito em condição de respirar, de criar e até mesmo de sorrir e sonhar. O sistema de saúde mental atual tem muito a melhorar. A análise de todos os serviços e recursos humanos disponíveis por regiões do país, realizada por um grupo de trabalho recentemente, indicou várias recomendações a serem implementadas (http://www.who.int/mental_health/who_aims_country_reports/en/index.html).
Uma questão importante é a expansão do número de leitos psiquiátricos em unidades do hospital geral. Receber pessoas com transtornos mentais em enfermarias de hospitais clínicos auxiliaria a reduzir o estigma enfrentado por pacientes e seus familiares. É também fundamental a continuidade do programa de desinstitucionalização progressiva dos pacientes remanescentes em situação asilar, sobretudo em hospitais reconhecidamente deficientes e com histórico de abuso dos direitos humanos.
Os transtornos mentais são responsáveis por 18% da sobrecarga global das doenças no país, mas contam com 2,5% do orçamento da saúde. Para um país que pretende reduzir a desigualdade social, é essencial cuidar de seus desprotegidos com dignidade. Que se amplie o financiamento à saúde em direção à oferta mais eqüitativa dos serviços destinados aos portadores de transtornos mentais, pois não há saúde sem saúde mental.
JAIR DE JESUS MARI , 55, professor titular do Departamento de Psiquiatria da Unifesp e professor honorário da Universidade de Londres, é membro do Comitê Executivo do Global Mental Health Movement. – 30/07/2009