Considerações sobre dificuldades no processo de ensino-aprendizagem em escolas situadas em regiões de vulnerabilidade socioeconômica.
Tenho observado, durante anos de trabalho com crianças em situação socioeconômica extremamente desfavorável, que as dificuldades no processo de aprendizagem dizem respeito muito mais às condições de precariedade em que vivem do que relacionadas à questão do ensino oferecido nas escolas e seus métodos pedagógicos.
Sempre se tem colocado que os maus resultados dos alunos são conseqüência da má qualidade do ensino ou falta de preparo dos professores. Mas isto é um erro de diagnóstico que, a meu ver, leva a um erro nas ações que visam corrigir e compensar as dificuldades e defasagens dos alunos em relação ao currículo escolar posto em prática.
Qualquer que seja o conteúdo, a meu ver, este só será apropriado pelo aluno como uma aprendizagem significativa se este fizer sentido dentro de seu mundo interno, ou seja, se tiver em consonância e ancorado em seu conjunto de vivências anteriormente experienciadas.
Paulo Freire baseou toda sua Pedagogia do Oprimido, nessa percepção e nessa premissa.
Assim, o método pedagógico deveria levar em conta o contexto em que esta criança vive. Se o ambiente dessa criança é pobre em um determinado tipo de estimulação propiciadora à compreensão do conteúdo oferecido pela escola, ela terá pouca probabilidade e pouca chance de apreender seu significado e portanto, tal conteúdo não será de seu interesse e assim, não lhe sendo familiar, pouco se pode esperar que absorva tais conhecimentos.
Mas, sobretudo, é necessário considerar as condições emocionais de crianças em estado de privação afetiva. Crianças com problemas emocionais tendem a ter maiores dificuldades no aprendizado. Se então, à falta de um meio propiciador e estimulante, ainda se somarem fatores emocionais advindos de falhas no ambiente, como esperar um bom resultado no desempenho dessas crianças?
Não estou afirmando que toda criança pobre terá entraves em sua capacidade cognitiva ou emocional, estou enfatizando como fatores adversos podem comprometer e muito a capacidade cognitiva dessas crianças em situação de privação afetiva e sócio-econômica.
Para a criança oriunda de um segmento pobre da população não são ofertadas aquilo a que pode se chamar de “bagagem oculta” que significa a introjeção de uma série de experiências enriquecedoras que são vivenciadas as crianças de meio mais abastado, tais como: pais intelectualmente mais preparados e interessados num bom desempenho escolar de seus filhos, oferta de ambiência facilitadora de aquisição de conhecimentos, como livros, filmes, idas à teatro, cinema, conversas, viagens, passeios, brinquedos educativos, reforços positivos a cada progresso, a cada conquista feita pela criança, suporte social oferecendo sensação de proteção, enfim….muitas condições facilitadoras e estimuladores que possibilitam uma familiaridade com o processo ensino aprendizagem que irá ter na escola e que se estenderá por todo o seu processo de aquisição de conhecimentos na escola e fora dela até a vida adulta.
Crianças de classes mais abastadas também não estão isentas de danos em seu processo psicopedagógico, caso venham sofrer estados de privação ou dificuldades emocionais de qualquer ordem. Imagine se a isto forem acrescentadas ainda, dificuldades sócio-econômicas graves com todas as variáveis que acompanham esta sua situação de vida; violência familiar, abuso sexual, alcoolismo, drogadição, famílias fragilizadas por laços afetivos que se perdem ou mudam com freqüência e mortes de parentes próximos por doenças ou violência e tantos outros fatores. Some-se a isto a freqüência com que vivenciam e assistem cenas de violências brutais, como assassinatos e outros. Some-se a isto a sexualidade precoce, tão constante nesse meio mais pobre.
Crianças traumatizadas é a expressão que se pode utilizar para a maioria delas que são as chamadas “crianças difíceis”.
O trauma é uma experiência definida como uma parte cindida no mundo interno da criança, a qual, pela dor, é reprimida e sua vida consciente ficará sem acesso a esta parte inconsciente, de tal modo a lhe permitir fazer contato, para poder elaborar. Estabelece-se como um nódulo invisível, incrustado na mente da criança, atuando dentro dela e afetando-a em todos os níveis de sua vida, desde o físico, passando pelo cognitivo ao emocional.
Como então esperar que crianças assim cresçam saudáveis e bem adaptadas, sem causar problemas ao ambiente onde estão? Geralmente, seu estado e seu comportamento estão sempre sinalizando um pedido de socorro, que se expressa na maioria das vezes, por comportamentos inadequados e quando maiores, até delinquenciais. Mas pedem, sobretudo um olhar, mesmo que seja um olhar de reprovação.
Assim, o que melhor se faria para lidar com problemas no processo ensino-aprendizagem e problemas de comportamento, seria esquecer momentaneamente este mesmo processo como alvo e entendê-lo como meio, como forma de compreender como este aluno reage, como ele se aproxima do conhecimento e ajudá-lo aí, exatamente neste ponto.
O resultado, a nota, deveria ser sempre apenas uma referência do quanto este aluno está apto a aproveitar o que lhe é oferecido e não um fim em si mesmo. O resultado, traduzido pela nota, deveria servir de referência se esta criança está bem, no sentido integral da palavra e não se está apenas sendo capaz de dar conta do conteúdo.
Se o professor fosse preparado para visar menos o resultado do processo ensino aprendizagem e mais treinado para observar seus alunos como seres na sua totalidade, observando como cada um se insere no processo ao invés de o quanto ele é capaz de produzir, acho que tanto a ansiedade do professor e as dificuldades dos alunos poderiam ser suavizadas, ou então resolvidas.
Muitos professores diriam que são preparados para ensinar e pronto, nada mais do que isso e que não compete a eles a solução da vida da criança; isto competiria aos pais e se estes não tomam conhecimento de seus filhos, eles não têm responsabilidade pelo que acontece à criança. Seria uma boa razão se fosse verdade. Mas não é.
Em tese, isto é real, mas humanamente, isto não procede. Um acolhimento amoroso do professor, um olhar diferenciado, mesmo que o aluno não lhe gratifique de imediato com um comportamento mais adequado e uma melhora em seu aprendizado, poderá salvar uma vida!
Ser professor é mais do que ser professor: ele exerce, queira ou não, uma função materna, uma função paterna e sobre ele, a criança projeta parte de seu mundo interno. Se o professor entender que o comportamento agressivo do aluno e seu comportamento não é algo pessoal contra ele nem um ataque ao seu esforço, poderá reconhecer então nesta criança ou adolescente, um pedido de atenção, de socorro, um desejo de ser amado e acolhido, podendo vivenciar experiências que, em seu meio, geralmente não conseguem.
Vamos também deixar claro que isto não significa deixar de dar limites ao aluno, dar normas de ética e respeito ao outro. Muito pelo contrário; saber contê-lo dentro de limites compreensíveis pode lhe trazer alívio, desde que a atitude do professor seja no sentido de resgatar e não apenas a de corrigir.
Professor, por mais mal pago que seja, por menos reconhecido que se sinta, no momento em que estiver com seu aluno, lembre-se que buscar compreendê-lo não fará seu fardo mais pesado, ao contrário, irá trazer-lhe uma enorme satisfação e uma crença e esperança na vida e uma sensação de que existe uma função social em sua profissão maior do que em nenhuma outra, mais importante do que todas as outras profissões existentes nesse mundo, pois o Educador é aquele que acredita nos recursos de seus alunos,mesmo que estes dêem momentaneamente provas em contrário. Seria tão bom se todo professor fosse capaz de ver sinais de esperança e honestidade onde outros não conseguem enxergar nada.
Professor, sua profissão é a mais nobre e bela de todas. Honre-a e desfrute das satisfações pequenas e grandes que ela pode lhe proporcionar.
ELIANA FRANÇA LEME – 09/07/2009